Barro, pouso que germina – Ensaio de amilton de azevedo sobre a peça “Grão”, do Núcleo Macabéa

Barro, pouso que germina

por amilton de azevedo

Mãe
reticências
só por garantia de nunca acabar

nem precisar de palavra que explique
Ni Brisant

A voz em Grão, do Núcleo Macabéa, é muitas mas também é uma. Em Arrimo (2020), último trabalho do grupo, ficam evidentes as tantas vidas em uma primeira pessoa no movimento autoral de Rudinei Borges na tomada de sua biografia enquanto mote para a cena. Pois aqui, neste Grão, está também este menino que é muitos. Na reza-canto de origem que abre a encenação, essa voz de menino sai da boca de narradoras que contam donde vieram.

Ali, é possível reconhecer trechos de Fé e Peleja (2014), obra do Núcleo Macabéa apresentada nas vielas da favela do Boqueirão, na zona sul de São Paulo. Ali, naquelas palavras, já estão o barro, o altar, Nossa Senhora, cantiga de Alzira e sussurro de Rosalva ao pé do oratório. Mas Grão é obra outra; frases e imagens se reorganizam como um curso d’água que nunca é o mesmo. E na escrita de Rudinei, menino nascido às beiras do Tapajós, poesia e dramaturgia conversam como dois velhos pescadores à ver o sol se pôr na beira de um rio que corre .

Grão, que celebra dez anos do Núcleo Macabéa, estava com estreia marcada para o final de janeiro de 2022 na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Mas são muitas as contingências destes tempos que nos coube viver; como muitas outras nestes últimos anos, a temporada presencial teve que ser suspensa. A encenação, dirigida por Donizeti Mazonas, é então registrada em vídeo, com direção audiovisual de Luciana Ramin e edição e montagem de Vicente Martos.

O microcosmos construído na cena através das ações das atuadoras Edi Cardoso e Silvani Moreno, das músicas e paisagens sonoras de Juh Vieira, do inventivo cenário (e figurino) de Telumi Hellen e da iluminação de Decio Filho chega, então, às telas e não aos palcos. O Núcleo Macabéa anuncia sua temporada online como de exibição do registro audiovisual de Grão.

Nomear algo é fazê-lo existir, é dar contorno ao antes desconhecido, incerto, fugidio. É a partir das palavras utilizadas para organizar uma obra que se pode fruí-la. Isso inclui tanto a dramaturgia – que no vídeo, além de ouvida, é também lida por meio das legendas, cuja fidelidade ao texto original permite ao espectador perceber quando certas construções são adaptadas no fluxo de dizer das atrizes – quanto a categorização (ou, talvez, conceituação) do que é (ou, talvez, se propõe a ser) a formulação artística apresentada.

Tratando-se, portanto, de um registro audiovisual, cabe apontar que a primeira sensação é a de uma saudade de um encontro que não aconteceu, espécie de nostalgia de um porvir. Mediada pelo enquadramento da câmera e os movimentos da edição, a experiência de ver Grão parece ser a de reminiscências: há uma singeleza da artesania do fazer teatral que inevitavelmente convida a estar perto. Uma potencialidade que está na presença, na proximidade, no olho no olho.

Ainda assim, há muito que permanece mesmo no que se perde. A direção de Mazonas evoca uma espécie de estilo (ou, talvez, espírito) dos trabalhos do Núcleo Macabéa; desde a poesia de Borges, constantemente em fluxo de infância e futuro, passando pela orgânica apropriação da narrativa pelas atrizes e pelas demais camadas da encenação – o que se explica, evidentemente, pelas parcerias recorrentes de Vieira na música e de Hellen na cenografia e figurinos.

Vieira, músico em cena, pouco aparece na edição, mas suas sonoridades d’águas e movimentos são fundamentais no andamento de Grão. O cenário de Hellen materializa o barro que é casa, que é filho, que é altar, pouso onde grão germina. Cardoso e Moreno moldam e são moldadas por este ambiente, como que habitando o sagrado que é caminhar com os pés na terra. Contando dos caminhos do rio, de vagalumes e pirilampos, trazem histórias familiares das margens amazônidas, margens literais e simbólicas de um Brasil que é tantos.

Notadamente, Grão é sobre a mãe. Sobre conversas secretas entre uma mãe e a mãe de Cristo; sobre o barro que principia tudo e o que nele também finda. Enquanto o menino quieto e triste constrói seus pousos-altares, tudo é sagrado. Quando morre a mãe, a vida parece por inteiro profanada. Mas assim como a natureza é cíclica, é possível regressar à vastidão do barro; neste pouso onde o grão germina, a vida segue nascendo em insistentes brotos.

As atrizes Edi Cardoso e Silvani Moreno na peça “Grão”, do Núcleo Macabéa, com dramaturgia de Rudinei Borges. Foto: Keiny Andrade.